Texto por Alexandre Bárbara Soares para a Revista Brasil Mood – Edição Zero
Era uma tarde quente de Fevereiro de 1988. Meu pai havia morrido algumas semanas antes. E o Flamengo jogaria contra o Volta Redonda pelo campeonato carioca. Os amigos bateram lá em casa, mandaram que me trocasse e me levaram pra Gávea, onde seria jogada a partida. Aquela era a primeira vez que eu saia de casa desde a morte do coroa e também a primeira vez que revia minha galera da escola. Lembro até hoje daquele jogo como uma espécie de recomeço. O Flamengo venceu, mas era o que menos importava.
O modo como constituí uma memória afetiva da vida e de meu percurso por ela é entremeada e pontuada por minha relação com o futebol. Dias especiais e pessoas marcantes, anos bons ou ruins, trabalho, amores, tudo isso se torna imagem na memória através da presença do futebol. Aprendi com Eduardo Galeano que o futebol é o espelho do mundo. Para ele, as emoções coletivas se fazem festa compartilhada, sem dar explicações nem pedir desculpas. Mesmo que se cante e decante teorias sobre o futebol, compreendê-lo passa pela experiência de um corpo afundado em meio à multidão, por um grito de gol engasgado por anos na garganta, pelo choro compulsivo por um título muito desejado ou por uma derrota muito sofrida, pelo sobe e desce por arquibancadas e bancadas de estádios mundo afora, pelos abraços suados que se disseminam entre desconhecidos como vírus pelo ar durante o momento eterno de um gol.
Talvez, por isso, o futebol seja mesmo a coisa “mais importante entre as menos importantes”. Muito provavelmente, o futebol jamais tenha sido algo além da força motriz de entretenimento das classes trabalhadoras. Mas continua sendo um das mais importantes expressões de identidade cultural coletiva, dessas que em plena era de globalização obrigatória nos recordam que o melhor do mundo esta na quantidade de mundos que o mundo contém.
Toda crítica em torno do futebol por parte de intelectuais e desafetos do esporte se organiza, muitas vezes, em torno de uma falsa premissa: de que há um investimento de energia ou desejo de um contingente gigantesco de pessoas em uma direção (o jogo do seu time de coração, um campeonato, etc) que captura ou inviabiliza a ação de mudança social (participação política, organização de base, busca por informação, etc). Ou seja, para um grupo grande de pessoas, se o cara tem uma vida difícil, constrói-se uma obrigação quase moral (como se alguma obrigação não fosse, sempre, moral) de abdicar de qualquer dimensão da vida que não seja a construção cotidiana e constante de ferramentas de enfrentamento à sua situação de exclusão, subordinação ou sofrimento. Assim, enquanto ele torce desesperada e mortalmente por seu time de futebol, não “percebe” que é explorado, sacaneado, humilhado e roubado. Ou, pior, “deixa de fazer algo” contra isso.
Ao mesmo tempo, impõe-se sobre as pessoas uma agenda de lutas que muitas vezes se apresenta pouco operativa, em curto prazo, no dia a dia destas. Claro que lutar por democracia e contra as opressões de classe, compreender os trâmites que compõe um Estado sectário e parcial ou produzir e informar-se sobre direitos fundamentais é importante, vital. Mas nem sempre tais ações garantem, imediatamente, aos sujeitos, a transformação da situação de opressão. Demandam tempo, luta e coletivização para começar a mexer em estruturas opressoras seculares. E a vida das pessoas segue dura, árdua e árida enquanto isso.
Já a paixão, não demanda nada. Ela só se estabelece e, por curtos períodos de tempo, como as substâncias alteradoras da consciência, muda tudo. Absolutamente tudo. Se muitas vezes o futebol é acusado de “alienar” as pessoas de suas condições de vida, pouco se reflete sobre o quanto o futebol torna possível suportar vidas insuportáveis. Torna possível passar sem adoecer por momentos tão sombrios quanto os que estamos vivendo, no Brasil e no mundo. O futebol tem sido, ao longo de um século, um traço identitário e afetivo central entre as classes trabalhadoras do planeta. Seja nos subúrbios de Buenos Aires às fábricas de Pequim, passando pelos portos do norte da Inglaterra ou pelas selvas africanas, o futebol integra, aproxima, possibilita uma janela por onde os desiguais se comuniquem. O futebol é parte de nossa cultura de classe, um mosaico de rituais coletivos e conversas públicas em um mundo profundamente individualista, um lugar onde nos misturamos socialmente, que trata do “nós” e não do “eu”. (Glodblatt, 2018).
Sempre que penso nisso lembro certa noite, enquanto assistia a um jogo do Flamengo em um bar perto de casa, quando pude conversar com o seu Paulo. O chamo carinhosamente de “Silva”, face à semelhança dele com o Batuta, antigo jogador do Mengão. Era Flamengo e Palmeiras. Seu Paulo é um coroa de seus sessenta e poucos anos, sem os dentes superiores da frente, trabalhador braçal da região, que bate ponto no bar que também frequento, quase todos os dias. Conversamos sobre o Flamengo, sobre jogadores antigos, sobre a tática do jogo, nos abraçamos efusivamente no gol do Mengão. Ao final, permanecemos uma hora conversando sobre futebol, comidas, temperos, ele me contou historias sobre pratos do Nordeste. Junto de nós, um rapaz visivelmente alterado, vestes sujas, empobrecido, pedia cigarro e comentava e sofria conosco naquela partida infinita. Ao final veio me dar um abraço suado e sincero, feliz, apertado. Ao fundo, da cozinha, “a tia”, que sempre faz a comida do bar, sorria e fazia piadas conosco durante o jogo.
Penso nisso porque o futebol e o meu clube nunca fizeram com que minha vida mudasse completamente, em suas condições materiais concretas. Pelo contrário. Tenho dívidas e, permanentemente, problemas financeiros devido a meu amor incondicional por meu time. Mas anos de arquibancada e geral, afundado em meio a uma massa de pessoas pobres e apaixonadas pela mesma coisa que eu, forjaram de maneira inexorável meu caráter e o que me tornei. E permitiram ser possível momentos como os daquela noite narrada acima, e outras posteriores, quando ao me despedir do Silva, ouvi dele: “semana que vem tamos juntos aqui, irmão”!
Quando se assiste a uma partida de seu time do coração, seja no estádio ou no bar, na casa dos amigos ou pela vitrine de uma loja de eletrodomésticos, compartilhamos algo. Pode não ser a revolução socialista, nem o acesso mágico à consciência da exploração pelo trabalho. Mas um afeto simbólico e concreto, que se sobrepõe aos modos lineares de operação do comportamento e do sentimento em um mundo em que as relações cada vez mais são marcadas pela performance e desempenho. E talvez, e justamente por isso, nestes momentos, as fronteiras de classe e raça entre nós se tornam mais fluidas, porosas, ainda que presentes. E não só nos aproximamos como nos tornamos, por um período efêmero, um “comum”. E se tem algo que aprendi com a psicologia foi que não se faz uma vida e não se estabelecem laços humanos apenas pela via da consciência. Como coloca o mestre da cultura popular brasileira, Luiz Antônio Simas, não se faz festa porque a vida é boa, mas pela razão inversa. A capacidade de fazer “festa na fresta” é o que permite inventar outros mundos e subverter a miséria.
Outra vez, estava tomando café em Casablanca. Marrocos. Vestia uma camisa do Flamengo. O rapaz do hotel veio à nossa mesa nos servir e comentou, baixinho, quase pedindo desculpas: “Brasil”? E frente à resposta afirmativa com um sorriso acolhedor, iniciou-se um diálogo sobre a admiração daquele jovem africano pela seleção brasileira de 1982, Zico, Ronaldo, Neymar. Outra feita, em Manchester, em um pub, assistia a uma partida do Flamengo pelo Tablet, aproveitando o wi-fi do bar. Um homem velho se aproxima, pergunta quem está jogando, sorri e comenta: “é um negócio incrível o futebol, né”? Ali começava um papo que varou a noite, regado à cerveja e historias daquele velho hooligan, torcedor do Manchester City. O futebol é ferramenta universal de comunicação e vinculo.
Não é o único, talvez nem seja o mais importante. Mas seu lugar no coração das classes trabalhadoras do planeta é intocável. Galeano também me ensinou que o futebol se parece com Deus, na devoção que desperta em muitos crentes e na desconfiança que desperta em muitos intelectuais. Para mim e muitos, o que futebol permite é “estar junto”, “com” as pessoas. Se o liberalismo contemporâneo vive da promessa de que podemos tudo sozinhos, que só dependemos de nós mesmos, que o melhor dos mundos é aquele onde não precisamos de outro ser humano, o futebol abre uma janela por onde a presença do outro é indispensável, fundamental, estruturante da experiência. Poucas coisas desnudam tanto a cultura de um povo quanto sua relação com o futebol.
Alexandre é psicólogo, Doutor em psicologia pela UFRJ, professor do departamento de psicologia da UFF (Volta Redonda) e passou os melhores momentos de sua vida nas arquibancadas de concreto e na geral do antigo estádio do Maracanã.