Passistas: para além do estereótipo

Texto por Joyce Lima para a Revista Brasil Mood – Edição Zero


“Pai, quero desfilar na Estação Primeira de Mangueira”, Carlos Roberto, meu pai, ficou sabendo do meu desejo em – finalmente – integrar uma escola de samba. Como diz um ditado muito popular no Brasil, “Quem sai aos seus, não degenera”. Dessa forma fiz valer a herança paterna, afinal, Carlos Roberto foi por bons anos passista de diversas escolas do Rio de Janeiro. Escrevendo isso, vocês leitores imaginam que a autora é uma negra, certo? Sim, certa resposta. Mas, até que ponto essa correlação passista x preta se torna nociva?

“Samba aí para gente ver?”, “Ah, eu sabia que você era passista!”, essas são algumas das afirmações ouvidas quando relato que já fui passista (por um breve tempo) nas escolas de samba cariocas Mangueira e Paraíso do Tuiutí. No entanto, pasmem: há pretas, de diversas “pretitudes” (estou falando carinhosamente de colorismo, rs), que não sabem sambar, ainda que a sociedade cobre isso. Há pretas maravilhosas que não sambam e não gostam de Carnaval, acreditem.

Para escandalizar ainda mais a opinião pública: há pretas que sambam incrivelmente, defendendo o pavilhão (a bandeira da escola de samba) na garra e no amor e, paralelamente, são universitárias, mestras, doutoras, intelectuais, guardas municipais, comunicólogas, professoras, administradoras, dentre outras tantas carreiras profissionais. O fato é que causa estranheza termos mulheres com infinitas especializações, para além do samba no pé, ou termos outras que não possuem a menor afinidade com esse universo, devido ao estereótipo arraigado quando se trata de mulheres negras e o Carnaval brasileiro. 

É claro que se olharmos para o Carnaval sob recorte das escolas de samba, especialmente as cariocas, vemos claramente a relação com a historicidade preta, sobretudo, no Rio de Janeiro, onde o surgimento das agremiações está estreitamente ligado à organização urbana (com o nascimento das comunidades, local ocupado majoritariamente por negros), às expressões e tradições culturais afro-brasileiras. Então é preciso considerar esse viés identitário. 

Porém, quando falamos em categorizar mulheres não brancas, saímos dessa esfera e entramos em outras mais complicadas, como o racismo e o machismo. E nós mesmas reproduzimos isso, uma consequência estrutural. Um bom exemplo é um fato ocorrido em um concurso, que já é questionável, realizado por uma emissora de televisão no qual seria escolhida uma mulher para ocupar o papel de uma personagem carnavalesca que faz alusão à passista – a clássica “mulata do samba”. Na ocasião, uma atriz publicou uma foto sexualizando todas as candidatas. Fica o questionamento sobre o então papel da passista. 

Por que, a passista seria uma figura relegada à hipersexualização no Carnaval? Temos ícones que contribuíram para a história das agremiações, como Nair Pequena, uma das fundadoras da Mangueira, que morreu sambando há 50 anos; Maria Lata D’Água, que atravessava a avenida se equilibrando com uma enorme lata d’água na cabeça defendendo a Portela; e Pinah, que apesar de não se considerar passista ou musa, foi destaque da Beija-Flor de Nilópolis, responsável por receber o Princípe Charles em visita ao Brasil. 

Nesta nova geração, há figuras que hoje assumem o posto de realezas das escolas, mas, que começaram como passistas, como é o caso de Evelyn Bastos, rainha da bateria da Mangueira, extremamente atuante em causas sociais e raciais; Viviane Araújo, cria de Padre Miguel, onde iniciou sua trajetória na Mocidade Independente de Padre Miguel e atualmente é rainha da Acadêmicos do Salgueiro; e Raissa Oliveira, que começou ainda nova, passando do posto de passista mirim para rainha da Beija-Flor, aos 12 de idade. 

Retornando ao Carlos Roberto, meu pai passista (os homens também integram as alas de passistas e fazem par com as mulheres, desempenhando aquele samba malandreado, bonito de se ver), pude ouvir muitas de suas histórias na Avenida Marquês de Sapucaí (onde desfilam atualmente as escolas do Rio). Aprendi com ele, por exemplo, que o principal papel do passista em uma escola é sambar bonito, no compasso da bateria, evoluindo com graça para não permitir que buracos sejam formados quando esta entra no recuo (localidade destinada à bateria na avenida).

Portanto, somos muito mais, para além de mulatas, de corpos pretos. Com respeito à figura de Sargentelli, a quem foi premiado com a alcunha de “mulatólogo” por descobrir e projetar mulheres pretas na mídia. É necessária duas vezes a recusa em ser “mulata”, uma vez que este é um termo racista utilizado no período escravagista para designar escravizados de carga e porque não somos carnes baratas à disposição. É preciso seguir, e não necessariamente sambando, para ocupar espaços. 


Joyce Lima é Jornalista por formação e atuação, Joyce Lima segue firme e forte nesse propósito há 8 anos, desenvolvendo escritas a partir do que sente, do que vivencia e de suas pesquisas. Sua caminhada é também laboratório de informações. Sambista e candomblecista, visa escurecer as coisas versando com a cultura de sua origem afro brasileira e com povos tradicionais de matriz africana.