Texto por Cassius Branco para a Revista Brasil Mood – Edição Zero
Reconhecer o privilégio de acordar todos os dias em um país com mais de sete mil quilômetros de litoral, dos quais, muitas centenas são de praias, me provoca, há muito tempo, um gostoso ufanismo. É que, ressalvado meu encantamento com as belezas e riquezas dos diversos biomas que compõem nosso território – às quais eu rendo os melhores elogios –, pé na areia, para mim, é fundamental.
Falta boa memória pra afirmar com exatidão quando comecei a seguir à risca o sagrado ritual de todo final de semana ensolarado, mas é curioso como o cheiro do protetor solar ainda me transporta para esse primórdio. O que consigo ter como certeza na minha mente é que, para quem foi introduzido na rotina praiana durante a infância, até mesmo construir castelinhos com o corpo besuntado e alvacento usando pazinhas de pequenos desconhecidos, ou quase morrer em apneia durante os solavancos submersos causados pelas ondas indevidamente enfrentadas, ou voltar do mar meio choroso, perdido da minha barraca familiar, carregando um generoso punhado de areia dentro da sunga são apenas detalhes do início de um estilo de vida apaixonante.
Para os apaixonados como eu, não tem relevância se o dia de sol começa dentro de um ônibus lotado de pessoas que não precisam ser perguntadas sobre seus destinos para que se saiba aonde irão, ou no interior de um carro com um grupo que vai disputar alguns centímetros de sombra sob o único guarda-sol levado no porta-malas. A paixão move os que só precisam de uma breve caminhada ao som das batidas do chinelo no próprio calcanhar e os que atravessam fronteiras para viver essa experiência nas férias ou no feriado prolongado. Não importa se foi necessário apenas cruzar um calçadão de pedras portuguesas ou percorrer duas horas de trilha sinuosa na companhia de alguém sem preparo físico e mal-humorado: nas areias da praia, nós sabemos, seremos todos recompensados.
Isso porque poucas experiências são tão sensoriais quanto se inserir naquele cenário onde, geograficamente, o mar encontra o continente. A controversa textura da areia e a brisa que vem do mar podem dar as boas-vindas às maravilhas de um mundo de caos e de um mundo de paz que são igualmente viciantes.
Eu sou dependente da praia lotada, onde, espremido, bebo do mais puro suco de verão, independentemente de qual seja a estação do ano. Só assim explico o prazer que sinto com a limitação espacial que me obriga a dividir a mesma canga com alguém e que garante a manutenção da sensação térmica deliciosamente infernal. Sou devoto do burburinho ininterrupto dos bate-papos ao redor que me exige narrativas efusivas e risadas cada vez mais altas. Vejo-me completamente magnetizado por aquela aglomeração à beira mar sob o sol ardente que, constantemente, me convida para um mergulho gelado e para uma cerveja mais gelada ainda.
A praia lotada é uma grande reunião de apaixonados pela descontração própria dos territórios democráticos, pela irreverência de todos os corpos num doce balanço a caminho do mar e pelo calor (humano). E eu, definitivamente, sou um deles.
Mas, meu vício me carrega também para onde o barulho das ondas não se abafa pelas conversas extrovertidas, nem pelas ofertas ensurdecedoras de mate, camarão no palito, sanduíche natural ou picolé. Não raro, eu procuro o refúgio da praia vazia, onde o espaço físico se preenche pela imensidão da paisagem que, invariavelmente, me despe dos meus óculos escuros, até quando a pequena extensão de areia sequer pode ser medida em quilômetros. Nela, a água salgada me dá sede de água de coco. Sobre o seu mar de grãos, estou na cama do quarto mais confortável do mundo.
A praia deserta pausa o meu tempo até o sol se pôr e, às vezes, isso é tudo o que eu preciso.
Fazer da praia de Itacoatiara, em Niterói, o meu quintal no meio da minha formação como amante praiano ajudou a construir essa adoração na minha juventude. A sua famosa pedra do Costão – de onde se tem a certeza de que se está no paraíso – testemunhou, paulatinamente, a solidificação dessa paixão.
A praia, quando já não é mais sinônimo de castelinhos e caixotes, pode servir de cenário para tardes intermináveis a uma legião de adolescentes despreocupados que, reunidos em grupos de no mínimo dez, almoçam sanduíche natural, se hidratam com repetidas doses de mate natural, e passam todo o tipo de vergonha até o último raio do sol poente. Não sei dizer quantas notas vermelhas eu posso atribuir aos encontros adolescentes nessa praia, mas não tenho dúvidas de que cada presença marcada pelo surfe no peito, pelo chorinho do mate compartilhado e pelas amizades da areia atribuiu a mim uma característica marcante da minha personalidade e fez cada prova final valer a pena.
Ao longo da vida, a epifania de se encontrar naquela praia sempre foi mantida e reforçada por tantas e tantas outras praias que eu sei que sempre vou ter a sensação de estar no lugar certo quando estiver em uma.
É que, pra quem ainda não acertou na loteria, a minha sorte grande é me perceber de frente para o mar, cercado de amigos, de família, de crianças se refrescando e se perdendo momentaneamente, de adolescentes tomando porre de mate em meio a uma algazarra, de locais e suburbanos relaxando com suas cervejas sem hora de partida ou apenas da brisa e de uma paisagem tropical de tirar o fôlego.
É incrível como o mesmo cenário natural me oferece lazer e hospitalidade de formas tão diferentes e, mesmo me trazendo rugas precoces, me faz consultar o serviço de meteorologia com a mesma rigorosa diligência com que verifico meus prazos e compromissos profissionais.
Acho que essa é a paixão que os panfletos e guias turísticos, que já tanto atraem novos entusiastas praianos para nosso litoral, não vendem. Ainda bem, né? Ou os sete mil quilômetros de berço esplêndido sobre o qual deita nossa terra, certamente, não seriam suficientes.
Cassius Branco é advogado e adora quando as pessoas se surpreendem quando diz isso. Formado pela UFRJ e pós-graduado pela UERJ, atua na área cível e é totalmente avesso à sisudez que cabe dentro de um terno com gravata. Carrega dos fóruns para o seu cotidiano apenas o amor pelos bons debates, o que faz, preferencialmente, entre amigos e com um copo de cerveja na mão.